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MORADA DOS CORVOS

Atualizado: 26 de jan. de 2020


A MORADA DOS CORVOS


“Por quanto tempo estive caminhando? Dias, horas, semanas? Nunca é tempo demais se você não sabe para onde ir...” . Assim murmurou o Homem Vestido de Negro enquanto cruzava a planície, conhecida pela população daquela esplanada como “A Morada dos Corvos”. Ele, assim como tantas outras pessoas, tende facilmente a esquecer do passado quando são surpreendidas pelo presente.


Aquele homem perdera a esposa levada pela enfermidade não completava-se um ano e agora, adornado por vestes e óculos igualmente escuros, peregrinava por aquela extensa, lúgubre e amarela planície. O Homem Vestido de Negro trancou-se por intermináveis semanas na casa em que conviveu com a esposa. Nenhum telefonema atendeu. Nenhum telegrama recebeu. Apenas os livros lidos repetidamente por ela e os velhos discos fora das embalagens e caídos pelo chão. A constante lembrança da amada pairava em todos os lugares, aquele cabelo vermelho, aquele sorriso largo, aquela risada engraçada. Todos aqueles cheiros e lembranças eram demais para um homem suportar, mesmo se o homem armasse-se de negro.


Porém, tudo agora era uma questão de poucos passos. Em seu âmago, em breve seria o fim. Seria o fim da dor? Da solidão e da amargura? Impossível afirmar. Seu desfecho estendia-se aos braços daquele despenhadeiro, onde a planície se encerrava. A Morada dos Corvos não possuía tal nome por acaso, pois quanto mais aproximava-se da gigantesca queda, mais o Homem Vestido de Negro era envolvido por corvos que se aglomeravam e cada vez mais flutuavam à sua volta. Em poucos segundos não diferenciava-se o céu dos corvos. O vento frio, seco e sujo era regido pelo sibilo que parecia vir do alto. Era a perfeita trilha sonora para o turbilhão de pensamentos e sensações que agora acometiam o Homem Vestido de Negro. Perguntas e mais perguntas proliferaram em sua cabeça: “Não sentirei mais dor? Alguém sentirá minha falta? Terei minha amada outra vez?”. Tantas eram as perguntas e nenhuma resposta.

O Homem Vestido de Negro observou os corvos que sobrevoavam sobre o manto daquelas poucas estrelas, quando um, saindo de sua circular trajetória, graciosamente manobrou em sua direção. Seu voo agora era reto e contínuo. Viu que tratava-se de um corvo atípico, possuía grandes olhos verdes e era um pouco maior dos demais que o circundavam. Levemente o corvo pousou em seus ombros e sussurrou alongadamente:

- “JAMMMMAAAAIS”!

O Homem que vestia negro, como se marchasse rumo ao próprio funeral, seguiu em frente. Seus passos eram cada vez mais firmes e o olhar, decidido. Em seu último curso, ventos frios varreram o céu e o escuro se tornou mais escuro... Mas seu fim não veio.

Seus braços agora eram asas e seu corpo não mais tocava o chão. Ele voou. Abriu suas asas recém-adquiridas e voou como se antes já o fizera mil vezes. Em seu voo, observou que abaixo, sobre a planície antes desconhecida, uma mulher caminhava nua. Seus cabelos eram de fogo e seu sorriso era íntimo como o toque de uma amante nua. Seus movimentos eram leves e suaves, seu rosto pendia em direção ao agora Corvo que havia sido Homem. Como uma canção que chegara ao fim, a graciosa figura, melodiosamente inquiriu: “Serei Corvo, algum dia, outra vez?”.

Sem suspiro ou silêncio, o Corvo que vestia negro respondeu:

“JAMAIS!”.

 

Autor: Allan Julio (Constante)

Ilustração: Autor desconhecido

Eu e Outros de Nós

Publicado originalmente na Oficina de Escrita Criarte (OEC)

de Belo Horizonte/MG - Maio/2015

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